Biblioteca Humana compartilha experiências sobre o momento do parto

Por Cristiane Souza
Equipe Ascom Ufam

Segunda-feira, 26 de novembro de 2018, foi dia de visitar a biblioteca. Mas não numa sala silenciosa e atravessada por estantes. Bem ao contrário, uma biblioteca ao ar livre, pulsante, cujo essencial são a empatia e o diálogo estabelecidos entre leitor e “livro”. Ao todo, dez mulheres assumiram o papel de livros vivos e compartilharam suas experiências sobre o momento do parto, pelo que foi possível identificar situações de violência obstétrica. Esta, que é a primeira Biblioteca Humana da região Norte, foi montada no Hall 2 da Faculdade de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Amazonas (FCA/Ufam), setor Sul do Campus Sede.

O trabalho foi liderado pela professora Jaila Borges, que, além de organizadora, compôs o “acervo” da biblioteca com o título ‘Parto sem mitos’. Na forma de livro dialogado, a docente do curso de Ciências Farmacêuticas da Ufam relatou sua experiência positiva de parto natural após os 35 anos. “Eu engravidei com 36, e isso já soa estranho para muitas pessoas. Parir de forma natural, então, com 37 anos? Nossa! Impossível! Mas não tem nada que impeça”, contou. “Quando a mulher engravida, parece que sua gestação vira algo público, e todo mundo palpita. Aí vêm aquelas perguntas: ‘O que é?É um ser humano que está ali, não uma coisa... Ou ‘Que dia vai nascer?’ Ora, no dia que o bebê quiser”, complementou a professora.

Assim como ela, outras mães se tornaram “livros abertos” para que os leitores pudessem conhecer o tema da violência obstétrica, uma manifestação da violência de gênero. Ela independe do tipo de parto (natural, normal ou cesariana) e independe também de classe social, de raça, de crença. “25% das mulheres brasileiras sofrem esse tipo de violência, sem ao menos ter consciência de que passaram por isso”, alertou a docente Jaila Borges, ao contar que a metodologia da Biblioteca Humana foi criada na Dinamarca, no ano 2000.

Segundo ela, durante um festival de música dinamarquês, a ONG “Stop the violence” organizou a primeira biblioteca viva para trazer ao debate a violência urbana. “Normalmente, são tratados estereótipos, temas esses que causam preconceitos e estigmas na sociedade. A maior ferramenta para quebrar o estigma é o diálogo, gerando empatia com alguém que passou por determinadas vivências”, argumentou a organizadora do evento.

Do encadeamento de ideias e disposição de discentes e docentes é que foi tomando forma o projeto da Biblioteca temática com “livros humanos”, que dão a oportunidade de esclarecer dúvidas, refletir e compreender. A experiência da leitura foi reformulada: trata-se da leitura do outro e da reavaliação do modo de pensar a respeito de questões sensíveis.

Como funciona?

Logo na entrada do Hall da FCA 2 foi montado um balcão. Ao lado, havia um catálogo com os livros, no qual foram apresentados os títulos e uma breve descrição da história a que o leitor teria acesso. Feita a reserva, o visitante seguiria para a área de leitura, onde, sentando-se com o livro escolhido, tinha início o diálogo e o esclarecimento de dúvidas.

Conforme explicou a professora Consuelena Leitão, a proposta era a de que os alunos interagissem e toda a comunidade apreciasse as experiências que são compartilhadas com os leitores. “O processo incluiu uma preparação e um acolhimento, tendo em vista que são contadas histórias de parto, com experiências muito pessoais, sejam boas ou ruins”, explicou ela, ao enfatizar que todos os discentes de graduação da Ufam podem cursar a disciplina ‘Gênero e cuidado com a saúde’, no âmbito da qual foi elaborado o evento.

Na verdade, a Biblioteca Humana é o trabalho final da disciplina, cujo conteúdo é amplo e muito importante para a formação dos profissionais em geral. Para a professora Jaila Borges, um dos aspectos mais importantes do evento é no sentido despertar a autonomia da mulher sobre o próprio parto, de que não se trata de um ato médico. “Isso é um processo que começa em casa e continua aqui na Universidade, onde estão sendo formados os profissionais que vão lidar com as pessoas e com as suas escolhas”, enfatizou a organizadora.

O começo

A preocupação com a violência obstétrica, no Amazonas, ganhou força quando foi criada a Comissão Estadual de Enfrentamento da Violência Obstétrica, pelo Ministério Público Federal (MPF), tendo a Ufam como uma das instituições participantes, ao lado da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e das secretarias estadual e municipal de Saúde, Susam e Semsa. “Uma das preocupações era que, para promover um parto mais humanizado, com respeito à mulher nessa hora tão importante, é preciso que os profissionais sejam formados com uma sensibilidade que os permita entender esse momento”, disse a professora Iolete Silva, diretora da Faculdade de Psicologia da Ufam (Fapsi).

“As universidades foram convidadas para esse grupo por conta da responsabilidade com a formação desses profissionais que atuam nesse contexto: médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos. Na Ufam, foi criada uma comissão interna, com representantes de vários cursos, com Direito, Medicina, Enfermagem, Serviço Social, Psicologia... E aí se planejou a oferta de uma disciplina capaz que contribuísse na formação dos graduandos”, continuou.

A Comissão de Enfrentamento da Violência Obstétrica da Ufam, então, sugeriu e criou a disciplina ‘Gênero e cuidado com a saúde’, que foi ofertada pela primeira vez neste período letivo 2018/2, a qualquer universitário da Instituição com disponibilidade de carga horária e interesse na temática. “Inicialmente, a proposta era voltada para a área da saúde, mas, depois, concluímos que qualquer área pode se beneficiar e contribuir. Por exemplo, o curso de Artes tem um potencial de contribuição muito grande”, ponderou a professora Iolete Silva.

Que violência é essa?

O conceito de violência obstétrica foi criado pela Organização das Nações Unidas (ONU), exatamente por se tratar de um problema mundial. A Comissão Estadual, dentro da sua competência, criou mecanismos de assistência. De modo particular, a área de tecnologia da Ufam produziu um aplicativo, disponível para a Susam e para a Semsa, que é capaz de registrar as ocorrências de violência obstétrica. “Ainda não há um número real, porque muitas vítimas não sabem reconhecer uma violência”, esclareceu a diretora da Fapsi.

“Esse tipo de violência pode ocorrer em hospitais públicos e privados, em todas as classes sociais. Por exemplo, fazer a mulher esperar mais tempo que o necessário, impor um tipo de parto, sem que a parturiente participe da decisão. Muitas vezes, são coisas que se falam para a mulher, com ‘Ah, na hora de fazer você estava contente. Agora está chorando, dizendo que está doendo’, e tudo isso é dito num momento muito sensível para a mulher”, finalizou a professora Iolete Silva a respeito dos casos mais comuns de violência obstétrica.

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